domingo, 4 de maio de 2008

Escrever, essa cachaça

Por Mário Velloso

Estou para ver moça mais teimosa que a literatura. Pessoalmente, já virei as costas para ela uma dúzia de vezes, por razões as mais variadas: falta de tempo, compromissos profissionais, familiares – e tome gravata!, como dizia o Vinícius.

A princípio esse afã escrevinhador parece sumir com o rabo entre as pernas, fenecendo a força que te empurra para o teclado. De repente, sem pedir licença muda nossa vida (agora foi o Toquinho), gerando textos que surgem sem o querer do escritor. Não tem jeito, a poesia amorfa no ar que nos ronda escolhe a esmo alguns incautos, que ficam com o encargo – para não dizer a sina – de traduzir em palavras essas ondas etéreas, cujo significado sempre se busca, mas nunca se alcança. Quem começa a escrever alguma coisa já sabe, de antemão, que sua tarefa ficará incompleta, por mais esforço que se faça. E é bom que fique: para o leitor, na outra ponta, elaborar o que ficou faltando, descobrir por ele mesmo algo mais sobre si e sobre a riqueza e o mistério presente no relacionamento entre as pessoas. O que está escrito pode ou não encantar o leitor, mas a boa literatura alfineta as entranhas desse que percorre as linhas; o que não ficou escrito, e sim sugestionado, de múltiplas formas, seja talvez a parte mais importante de uma obra literária de valor. E a incompletude da obra é útil também ao escritor, pois, ao lançá-la do porto – isto é, publicá-la – terá uma aparente sensação de ter dito tudo o que queria. Anos depois o texto serve ao próprio escritor, que, relendo-o, vai perceber que algumas passagens poderiam ser trabalhadas de outra forma. A autocrítica bem calibrada é um poderoso instrumento de formação e aperfeiçoamento do escritor.

As inquietações que se transmudam em letras vão se formando sabe-se lá como. Pode começar com um canto de sorriso de um transeunte, uma expressão perdida numa multidão, uma pergunta sem resposta que se apresenta de vez em quando, com o detalhe de nem você saber direito que pergunta é essa. Sem perceber você vai alimentando essas cobras, que vão se mexendo em algum compartimento da alma. Em paralelo a isso, a própria vida dá um empurrão – por vezes, um senhor empurrão – nessas questões, te colocando diante de situações que evocam seu material impalpável. Nada disso é claro, com plaquinhas explicativas. De um Estadão de domingo você talvez tire uma reles letra meio borrada; um drama alheio que você presencie, por acaso, explode em minúsculos cristais, sobrando para você uma imperceptível partícula, depois atirada no cadinho desobediente da criação.
Mesmo depois de escrito um texto, a vida se encarrega de colocar o autor diante de sua obra, dita puramente ficcional. Você vê, às vezes vive, algo que um dia foi criado em ato de sincera e pura criação ficcional. E se diverte, se emociona, se espanta, mas acima de tudo reconhece a grandiosidade da literatura, o poder dessas forças intangíveis que se viciam em rodear aquele que circunstancialmente escreve. Portanto, cuidado com o que você escreve, a arte imita a vida e também a vida imita a arte.

Uma vez adquirido o vício – e cada um tem a sua trajetória, invariavelmente marcada por percalços – você sabe que travará sem sossego essa luta com as palavras e as idéias. A tal batalha previamente perdida, que seduz pela busca e pela trajetória errante, nunca pela certeza do resultado. Mergulhar na literatura é deixar de lado as certezas e abraçar as dúvidas, as existentes e as que você vai desenvolver ao longo do caminho. É saudável, é divertido, é recompensador (esqueça dinheiro), é um ato desbravador de si mesmo, da vida e da sociedade em que vivemos.

Tive a oportunidade de caminhar pelas ruínas de Pompéia, e lembro-me da marcante sensação experimentada, a de que, afinal de contas, não evoluímos tanto de lá para cá. Continuamos morando em cidades, dormimos, comemos, trabalhamos, copulamos, traímos e perdoamos, refugiamo-nos nas artes e nos entretenimentos de arena. Se há mais de dois mil anos o homem vive nisso, e muitos observadores atentos já discorreram sobre a condição humana, por que esse fascínio permanente e imorredouro pelas letras? Porque há o detalhe, a nuance, o dizer de uma maneira diferente, o sequenciar expressões jamais reunidas, dando-lhes outra conotação, despertando outros sentimentos ao lê-las. Temas sempre existirão, porque os dramas humanos são infinitos, e se alguém já escreveu sobre um assunto, certamente haverá outro ângulo de ver a questão, e haverá outra maneira de contar a estória. Não tem jeito, não adianta desprezar a moçoila literatura. Depois de um tempo viajando em leituras prazerosas, vibrando em silêncio com expressões bem colocadas, vagando em incertezas atrozes, fazendo das lombadas em desalinho suas companheiras de vida, não lhe resta outra alternativa a não ser abraçar, meio caído na mesa, esta cachaça dominadora, boa que só ela.

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